Por Ana Paula Souza - Matéria replicada da Carta Capital
29/11/2024
Ao falar sobre a série Senna, que estreia na Netflix nesta sexta-feira 29, Caio Gullane tem delineado um certo paralelo entre as trajetórias do piloto e a dele e do irmão Fabiano: “Senna foi lutar suas batalhas num coliseu mundial. E tem um lado que é um pouco como a gente fazendo audiovisual: quando está pronto, é tudo lindo, mas o que a gente passa nesse caminho... Quando penso nesse projeto, eu digo: parece que a gente se preparou a vida toda para isso”.
A Gullane Entretenimento, fundada em 1996, produziu, ao longo desses quase 30 anos, 58 longas-metragens para cinema e 53 séries para televisão e plataformas.
Os projetos somam mais de 500 prêmios e passaram por festivais como Cannes, Veneza, Berlim e Sundance. Ainda assim, Senna tem sido definido, por Caio e Fabiano, como um marco importante na trajetória da empresa e deles próprios.
Nas palestras sobre a série dadas em dois grandes eventos do setor, o Rio 2C, em junho, e o IV Encontro de Ideias Audiovisuais da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro, os irmãos se permitiram a grandiloquência para tentar dar a dimensão da série em seis episódios.
Eles contaram que foram 325 diárias de filmagens ao longo de sete meses, durante os quais chegou a haver unidades de produção, simultaneamente, no Brasil, na Argentina e no Uruguai; que a série envolveu cerca de 15 mil pessoas, com equipes do mundo inteiro e atores de 16 países; e que foram construídas, na Argentina, 22 réplicas de carros de Fórmula 1 e, depois, captado o som de motores de diferentes modelos, hoje nas mãos de colecionadores.
“Mas toda a liderança criativa”, sublinha Caio, “esteve com profissionais brasileiros”. E se o produtor frisa esse ponto é porque, embora tenha sido idealizada pela Gullane, Senna é um original Netflix, ou seja, quem financiou o projeto e detém os direitos sobre ele é a plataforma. Mas a frase espelha também um velho desejo deles: fazer um audiovisual brasileiro que conseguisse internacionalizar-se.
“A Gullane sempre teve vontade de se plugar nesse sistema da indústria”, afirma Fabiano. “E para qualquer país que não seja inglês falante, não é simples se plugar num sistema tão organizado em torno das obras de língua inglesa e fazer coisas que transbordem o seu país.”
Os irmãos conversaram com CartaCapital por videoconferência, cada um de sua sala, na sede da empresa, no Alto da Lapa, em São Paulo, uma semana antes da estreia de Senna. Logo no início da conversa, a afiada dupla, que sabe dar e aproveitar deixas entre si, indicou ver 2024 como um ano de colheita – e, quase inevitavelmente, de balanço da trajetória até aqui.
"A gente sempre quis se plugar nesse sistema da indústria"
É que, antes da estreia de Senna, eles tiveram uma produção selecionada para a competição do Festival de Cannes – Motel Destino, dirigido por Karim Aïnouz – e lançaram, nas salas, Arca de Noé, a maior animação feita no Brasil, viabilizada por meio de uma coprodução com a Índia.
Ainda que o momento seja único, ter projeção está longe de ser algo novo para eles. Desde o início da carreira, não só pela capacidade de realização, mas pela desenvoltura e, talvez, por serem a versão brasileira dos irmãos que fazem filmes – como os Warner, os Coen, etc. –, eles sempre circularam bem pelo setor audiovisual e tiveram espaço na mídia, estampando capas de revistas e jornais.
A fama no meio começou a ser construída ainda na faculdade de Cinema da Faap, em São Paulo: enquanto quase todos ali queriam virar cineastas, eles se puseram logo a produzir. Um dos curtas-metragens que realizaram como estudantes foi Cartão Vermelho (1994), de Laís Bodanzky, diretora também do primeiro longa-metragem da empresa: o memorável Bicho de Sete Cabeças (2001), simbólico de um novo cinema brasileiro que vinha surgindo.
A maior prova, àquela altura, de que a reputação de “jovens produtores talentosos” estava se espalhando é que Hector Babenco (1945-2016) os chamou para fazer a produção-executiva de Carandiru (2003). Três anos depois, e aí pela própria Gullane, eles provariam seu diferencial com O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, selecionado para o Festival de Berlim.
A lista de projetos, de lá para cá, é extensa e diversa: há desde a franquia Até Que a Sorte nos Separe e os filmes Que Horas Ela Volta? e Bingo – o Rei das Manhãs até as séries Alice (HBO), Carcereiros (Globoplay) e Sintonia (Netflix). A variedade no perfil dos projetos não é fruto do acaso.
“Nosso foco sempre foi ter uma produtora de conteúdo. E, numa época em que ninguém tinha isso – ou se fazia também publicidade ou se dirigia um filme a cada cinco anos –, sempre buscamos diversificar a produtora”, diz Caio, puxando um fio do tempo no qual se deixam ver também as políticas públicas para o setor e as tendências de mercado.
“Nós não nos acomodamos, por exemplo, só à lei de incentivo. A gente rapidamente abriu o flanco internacional, e também percebemos que a televisão iria dar frutos e começamos a trabalhar com várias emissoras”, prossegue Caio, antes de, como fará ao longo da conversa, sugerir que o irmão traga sua visão do assunto.
“Havia as produtoras supergrandes de publicidade e as produtoras pequenas, sem estrutura. A gente queria ser uma empresa grande, estruturada, mas que tivesse como negócio o entretenimento”, diz Fabiano. “E nós fomos, de fato, antecipando decisões muito conectadas com o que aconteceria no mercado.”
Isso significou, nos anos mais recentes, se preparar para trabalhar com o streaming, a partir de um modelo de negócios diferente daquele que tinham, por exemplo, com a TV Paga, ancorado em uma lei federal que instituiu a cota de tela e previu recursos para a produção.
Como as plataformas não têm uma regulação específica no País, o investimento é totalmente privado – o que significa, dentre outras coisas, ter de adaptar-se aos parâmetros internacionais de produção e compliance.
“A gente plantou tudo isso, né? Fizemos várias séries, pequenas, médias, grandes para chegar nesta gigante. A gente fez vários filmes em coprodução com vários países para chegar no Arca de Noé. Estivemos em muitos festivais até termos na competição de Cannes um filme em que éramos majoritários”, enumera Caio. “Isso tudo é um pouco fruto da nossa insistência.”
Caio e Fabiano, que têm um terceiro irmão, mais novo, Danilo, perderam o pai crianças. E é difícil apartar a história da Gullane dessa orfandade. Eles contam, juntos, que a mãe, uma pedagoga – o pai era pedagogo e filósofo – não deixou faltar nada aos filhos, mas que, além de sempre matriculá-los nas escolas onde ia trabalhar, não dava dinheiro para roupas da moda ou qualquer extravagância.
Criados sem mesada, mas com liberdade, eles passaram, na adolescência, a fazer bicos. Fabiano começou a produzir bandas e Caio, com uns 15 anos, já o ajudava, “puxando um cabo”, fazendo o que fosse preciso. Depois, Caio foi trabalhar com eventos e, havendo uma brecha, levava o irmão para quebrar galhos. “Quando nosso pai faltou, a gente falou: ‘Somos um time’. Então, foi sempre assim.”
Muito envolvidos com o trabalho, só fizeram faculdade porque a mãe mandou. “A gente pagava nossa faculdade desde o começo, aquela faculdade de boys...”, ri Caio, arrancando uma risada do irmão. “Existe uma linha do amor e do sanguíneo que marca o nosso caminho.”
Essa linha, contam eles, também foi ganhando diferentes contornos ao longo do tempo. Há cerca de dez anos, a Gullane contratou uma consultoria e um treinamento de liderança empresarial. “Esse treinamento nos ajudou muito com isso. Porque tinha hora que eu falava: não vou melar o almoço de domingo por causa dessa Gullane”, brinca Caio.
"Quando nosso pai falou, a gente falou: 'Somos um time'
“A gente também chamou essa consultoria porque percebemos que havia muitas ferramentas do lado do produtor audiovisual e poucas para o lado de empresário bem-sucedido”, emenda Fabiano, para, em seguida, lembrar da frase que ouviram à época. O consultor explicou que eles tinham de fazer a passagem da trajetória de guerreiros do cinema para empresários bem-sucedidos do audiovisual.
A empresa tornou-se uma S.A. e tem, hoje, cerca de cem colaboradores fixos. Entre eles, há gente com 20 anos de casa, como a produtora-executiva Ana Saito. Quem também está com eles desde o início é a sócia Débora Ivanov.
“O audiovisual só acontece em grupo – é uma atividade holística. As pessoas têm de estar juntas”, diz Fabiano, lembrando de diretores muito ligados a eles, como Laís Bodanzky, Cao Hamburger, Anna Muylaert, Daniel Rezende, Luiz Bolognesi, Karim Aïnouz e Sérgio Machado.
Ao mesmo tempo que mantêm relações construídas num tempo em que fazer filmes tinha muito de aventura, ambos se veem como profissionais que souberam amadurecer. “Imagine se a gente estivesse fazendo projetos do mesmo jeito há 30 anos... Depois de algum tempo, você pensa: ou eu busco uma segurança ou vou ficar maluco. Tivemos que tentar encontrar um lugar de equilíbrio, aprender a lidar com crises e com o ego, sem que aquilo nos afetasse demasiadamente”, reflete Caio. “Esse amadurecimento é, inclusive, um pouco do que falta para o nosso setor.”
Fabiano, ao ouvi-lo, repete o sonho grande que sempre teve para a empresa, mas não só para ela: “É importante que nós, como País, tenhamos ambições maiores para o nosso audiovisual. Não é, Bro?” Bro é a forma pela qual Fabiano passa a bola para Caio. Para Caio, ele é “Fá”. Mas, no que diz respeito às ambições, é isso mesmo: a meta agora é estruturar projetos realmente grandes, concordam.
Senna foi não só o maior projeto da Gullane, mas da Netflix Brasil. E, na Gullane, foi um projeto que levou cerca de 15 anos para ser viabilizado. Quando procuraram a família, eles sabiam não ser os primeiros: grupos internacionais chegaram a sugerir Sylvester Stallone e Antonio Banderas para o papel de Ayrton. O argumento que levaram consigo foi: a história de Senna devia ser contada por brasileiros.
Mais difícil que convencer a família foi convencer alguém a bancar um filme de Fórmula 1, um evento que envolve máquinas complexas e acontece ao redor do mundo. Há quatro anos, a Netflix topou o desafio. Uma conclusão a que se chegou é de que seria impossível rodar nos países todos do circuito. Depois de muita pesquisa, optou-se pelos autódromos da Argentina e do Uruguai – neles, foram reproduzidos vários outros.
Caio se lembra, com gosto, do momento das filmagens em que presenciou um almoço, em um lugar inóspito, no qual havia umas 600 pessoas da equipe comendo. Fabiano, por sua vez,atualiza seu sonho: o mundo, a partir de agora, vendo Senna e voltando-se para o audiovisual brasileiro.